CARTA A MENEQUEU - na íntegra

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

 

Apesar de longa, Esta carta, apesar de longa, é fundamental para compreendermos o pensamento de Epicuro e sua contemporaneidade. Assim, espero que gastem um pouco de seu tempo e leem(lêem):

CARTA A MENEQUEU

[ANÁLISE DOS PRAZERES]

É preciso considerar que, entre os desejos, alguns são naturais, outros vazios, que, entre os desejos naturais, uns são necessários, outros, simplesmente naturais; dentre os que são necessários, uns são necessários à felicidade, outros à própria vida. É ajusta compreensão dessas coisas que permite referir toda escolha e toda recusa à saúde do corpo e à ataraxia da alma, já que nisso está a finalidade da vida feliz. Pois agimos sempre para evitar a dor e o medo. Quando o conseguimos, toda a turbulência da alma se dissipa, já que o vivente não mais tem de perambular como se buscasse algo ausente nem procurar alguma coisa para satisfazer o bem do corpo e o bem da alma. Só precisamos do prazer quando sofremos por sua falta; mas quando não sofremos, não temos nenhuma necessidade de prazer. Por isso dizemos que o prazer é o começo e o fim da vida feliz. É ele que reconhecemos como o bem primitivo e natural e é a partir dele que se determinam toda escolha e toda recusa e é a ele que retornamos sempre, medindo todos os bens pelo cânon do sentimento.

Exatamente porque o prazer é o bem primitivo e natural, não escolhemos todo e qualquer prazer; podemos mesmo deixar de lado muitos prazeres quando é maior o incômodo que os segue; e consideramos que muitas dores são melhores do que os prazeres quando conseguimos, após suportá-las, um prazer ainda maior. Todo prazer é portanto bom porque seu vínculo conosco é congênito; no entanto, não convém buscar todo e qualquer prazer. Do mesmo modo, toda dor é um mal e no entanto nem todas são de natureza a nos fazer fugir. É por comparação e pelo exame dos benefícios e dos inconvenientes que devemos avaliar todas essas coisas.

Há casos, com efeito, em que o bem pode ser para nós um mal e, reciprocamente, um mal pode se tornar um bem. Julgamos também que a independência é um grande bem, não porque devamos sempre nos contentar com pouca coisa, mas a fim de que, se nos faltar a abundância, possamos satisfazer-nos com pouco, verdadeiramente convencidos de que os que encontram na abundância os mais doces prazeres são os que dela menos precisam e que tudo que é natural é fácil de obter, mas não o supérfluo. Sabores simples nos trazem prazer igual ao de uma suntuosa refeição, uma vez saciada a dor que a carência engendra; o pão e a água produzem o mais alto prazer quando aquele que precisa deles os leva aos lábios. Acostumar-se com a simplicidade e frugalidade assegura plena saúde e deixa o homem disposto para os esforços úteis de sua vida e quando, uma vez ou outra, desfrutar do luxo, será da melhor maneira, sem temor dos dias difíceis.

O BEM SUPREMO

Quando dizemos que o prazer é a meta, não nos referimos aos prazeres dos depravados e dos bêbados, como imaginam os que desconhecem nosso pensamento ou nos combatem ou nos compreendem mal,e sim à ausência de dor psíquica e à ataraxia da alma. Não são com efeito as bebedeiras e as festas ininterruptas, nem o prazer que proporcionam os adolescentes e as mulheres, nem comer peixes e tudo mais que uma rica mesa pode oferecer que constituem a fonte de uma vida feliz, mas aquela sóbria reflexão que examina a fundo as causas de toda escolha e de toda recusa e que rejeita as falsas opiniões, responsáveis pelas grandes perturbações que se apoderam da alma. Princípio de tudo isso e bem supremo é a prudência. Por isso, ela é ainda mais digna de estima do que a filosofia.

MÁXIMAS FUNDAMENTAIS

I - O ser bem-aventurado e imortal está livre de preocupações e não as causa a outrem, de modo que não manifesta nem cólera nem bem-aventurança: tudo isso é próprio da fraqueza.

II - A morte não é nada para nós, pois o que se dissolve está privado de sensibilidade e o que está privado de sensibilidade não é nada para nós.

III – O limite da grandeza dos prazeres é a eliminação de tudo que provoca dor. Onde estiver o prazer e enquanto ele aí permanecer, não haverá lugar para a dor ou o sofrimento, juntos ou separados.

IV - A dor não dura de forma contínua na carne. A que é extrema dura muito pouco tempo e a que ultrapassa em pouco o prazer corporal não persiste por muitos dias. Quanto às doenças que se prolongam, elas permitem à carne sentir mais prazer que dor.

V - Não é possível viver feliz sem ser sábio, correto e justo, [nem ser sábio, correto e justo] sem ser feliz. Aquele que está privado de uma dessas coisas, como, por exemplo, da sabedoria, não pode viver feliz, mesmo se for correto e justo.

VI - Os meios de viver com segurança em relação aos homens são bens conformes à natureza, qualquer que seja a maneira pela qual os consigamos.

VII - Algumas pessoas desejam adquirir grande fama e se tornar célebres, acreditando assim estar em segurança diante dos homens. Se, dessa forma, a vida delas estiver ao abrigo de qualquer perigo, terão, com efeito, obtido um bem conforme à natureza; mas se ela [a vida] não estiver isenta de perturbações, elas não terão obtido aquilo a que tinham inicialmente aspirado, seguindo a inclinação de sua natureza.

VIII - Nenhum prazer é em si um mal, mas as coisas que nos proporcionam certos prazeres acarretam sofrimentos às vezes maiores que os próprios prazeres.

IX - Se todo prazer pudesse acumular-se, se persistisse no tempo e percorresse a composição toda de nosso corpo, ou pelo menos as principais partes de nossa natureza, então os prazeres não difeririam entre si.

X - Se as coisas que proporcionam prazeres aos dissolutos pudessem livrar o espírito das angústias que sofre sobre os fenômenos celestes, a morte e os sofrimentos e se, ademais, elas lhes ensinassem o limite dos desejos, não teríamos nada para repreendê-los, já que estariam mergulhados em prazeres sem nenhuma mistura de dor e de tristeza, que constituem precisamente o mal.

XI - Se nunca estivéssemos perturbados pelo temor dos fenômenos celestes e da morte, inquietos com o pensamento de que esta pudesse afetar-nos, e se não desconhecêssemos os limites próprios às dores e aos desejos, não teríamos necessidade de estudar a natureza.

XII - Aquele que não conhece a fundo a natureza, mas se contenta com conjecturas mitológicas, não poderá liberar-se do temor que sente a respeito das coisas mais importantes, de modo que, sem o estudo da natureza, não e possível desfrutar de prazeres puros.

XIII - De nada serve adquirir a segurança em relação aos homens se as coisas que se passam acima de nós, aquelas que se encontram sob a terra e aquelas que se espalham pelo espaço infinito nos inspiram temor.

XIV - Ainda que possamos até certo ponto nos colocar em segurança perante os homens, por meio do poderio e da riqueza, obtemos uma segurança ainda mais completa vivendo tranqüilamente longe da multidão.

XV - A riqueza que é conforme à natureza tem limites e é fácil de adquirir, mas aquela imaginada pelas vãs opiniões é sem limites.

XVI - A fortuna tem pouco efeito sobre o sábio; é sua razão que regula as coisas maiores e mais importantes durante toda a duração de sua vida.

XVII - O justo goza de uma perfeita tranqüilidade de alma; o injusto, em compensação, está cheio da maior perturbação.

XVIII - O prazer na carne não pode aumentar quando a dor causada pela necessidade é suprimida, ele pode somente se diversificar. Na alma, o limite do prazer é atingido pela meditação sobre aquelas coisas mesmas e as que lhes são conexas, que haviam provocado extremas angústias.

XIX - O tempo infinito contém a mesma soma de prazer que o tempo finito se medirmos pela razão os limites do prazer.

XX - A carne considera os prazeres como sendo ilimitados, e seria necessário um tempo infinito para satisfazê-la. Mas a inteligência, que determinou o objetivo e os limites da carne e nos liberou do temor em relação à eternidade, preparou-nos uma vida perfeita e não temos mais necessidade de uma duração infinita. Ela não foge, todavia, do prazer e, quando as circunstâncias obrigam a deixar a vida, não sente ter sido privada daquilo que a vida oferecia de melhor.

XXI - Aquele que conhece perfeitamente bem os limites que a vida nos traça sabe o quanto é fácil conseguir aquilo que suprime a dor causada pela necessidade e torna a vida inteira perfeita, de forma que não necessita mais de coisas cuja aquisição exija esforços excessivos.

XXII - Não devemos perder de vista o objetivo que nos fixamos nem a evidência sensível à qual ligamos nossas opiniões, senão tudo estaria cheio de confusão e de perturbação.

XXIII - Se combates todas as tuas sensações, não terás nada como referência para discernir exatamente aquelas que consideras falsas.

XXIV - Se rejeitas pura e simplesmente uma sensação qualquer, em vez de distinguir, de um lado, a opinião que ainda espera ser confirmada e, de outro, aquilo que efetivamente se origina da sensação, das emoções e das idéias que as representam, tornarás confusas as demais sensações por causa dessa vã opinião e, assim, destruirás o próprio critério. E se, por outro lado, considerares em tuas concepções e conjecturas como igualmente certo aquilo que demanda ser confirmado e aquilo que não precisa mais de provas, não escaparás ao erro e tornarás assim impossível toda argumentação e todo julgamento sobre o verdadeiro e seu contrário.

XXV - Se não efetuas, em todas as circunstâncias, a ligação entre cada um de teus atos e o objetivo da natureza, e dele te desvias, seja para evitar, seja para perseguir um objetivo qualquer, teus atos não serão conformes à tua doutrina.

XXVI - Todos os desejos que não provocam dor quando permanecem insatisfeitos não são necessários, mas podem ser facilmente reprimidos se nos parecem difíceis de realizar ou capazes de nos causar danos.

XXVII - De todos os bens que a sabedoria nos proporciona para a felicidade de toda nossa vida, o da amizade é de longe o maior.

XXVIII - O mesmo conhecimento que nos torna corajosos diante do perigo, ensinando-nos que ele não dura sempre e nem mesmo muito tempo, ensina-nos também que a amizade é a melhor garantia de segurança em nossa precária condição.

XXIX - Entre os desejos, há os que são naturais e necessários, outros que são naturais, mas não necessários, outros enfim que não são nem naturais nem necessários, mas produtos de uma vã opinião.

XXX - Todos os desejos naturais que não provocam dor quando permanecem insatisfeitos e que, entretanto, implicam um esforço contínuo, são produto de uma vã opinião e não é sua natureza própria que torna impossível reprimi-los, mas a idéia quimérica do homem.

XXXI - O direito natural é uma convenção utilitária feita com o objetivo de não se prejudicar mutuamente.

XXXII - Relativamente aos animais que não puderam concluir um pacto com o objetivo de não se causar danos mutuamente, não há nada que seja justo ou injusto. Tampouco há em relação aos povos que não puderam ou não quiseram concluir tais pactos com o objetivo de não causar e não sofrer danos.

XXXIII - A justiça não existe em si mesma, mas só nas relações recíprocas e naqueles lugares em que se concluiu um pacto para não causar e não sofrer danos.

XXXIV - A injustiça não é em si um mal, este reside no medo aterrorizante de não escapar àqueles que têm por função castigar os culpados.

XXXV - Não é possível que aquele que comete, às escondidas, algo contra a convenção de não se prejudicar mutuamente possa ter a certeza de que não será descoberto, mesmo se, no momento, puder escapar mil vezes, pois, até o final de sua vida, não terá certeza de não ser pego.

XXXVI - Em geral, a justiça é a mesma para todos, dado que ela representa uma vantagem para as relações sociais. Mas, considerando cada país em particular e outras circunstâncias determinadas, a mesma coisa não se impõe a todos como justa.

XXXVII - Entre as prescrições editadas como justas pelas leis, aquela que recebe confirmação de ser útil à comunidade é justa, quer seja a mesma para todos os homens, quer não. Mas se alguém estabelecer uma lei que não for vantajosa para a comunidade, essa lei de nenhum modo possui a natureza do justo. E mesmo quando a utilidade inerente à justiça não se faz mais sentir, após ter sido durante certo tempo conforme a essa prenoção, não terá sido menos justa durante esse intervalo de tempo para todos aqueles que não se deixam levar por frases ocas, mas fixam sua atenção sobre os próprios fatos.

XXXVIII - Ali onde se torna manifesto, sem que as circunstâncias tenham mudado, que as leis estabelecidas como justas acarretam conseqüências que não são conformes à prenoção de justiça, tais leis não são justas. E quando, em conseqüência de uma mudança das circunstâncias, as leis estabelecidas como justas não se mostram mais úteis, elas não deixarão de Ter sido justas no momento em que ofereciam utilidade às relações sociais entre os cidadãos da mesma comunidade. Elas posteriormente deixaram de ser justas por não mais serem úteis.

XXXIX - Aquele que sabe encarar corretamente aquilo que as coisas exteriores podem apresentar de inquietante consegue tornar próximas as que são acessíveis e, das que não o são, consegue ao menos que não lhe sejam hostis. Quanto àquelas, enfim, com as quais nem isso é possível, ele as evita e só busca as coisas que lhe são úteis.

XL - Aqueles que têm a possibilidade de colocar-se em segurança relativamente a seus vizinhos convivem da maneira mais agradável e baseada na mais firme confiança. E, após ter gozado de mais perfeita amizade, não se lamentam se algum deles desaparece prematuramente, como se isso devesse inspirar piedade.

Fonte: http://74.125.47.132/search?q=cache:qtM60tkEcCwJ:www.colegiolondrinense.com.br/filosofiadisciplina/FilosofiaEpicuroTextos.doc+texto+de+epicuro&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br

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